Gedeão caricaturado por Rómulo de Carvalho ( 1958 )
Esta é a cidade, e é bela.
Pela ocular da janela
foco o sémen da rua.
Um formigueiro se agita,
se esgueira,freme,crepita,
ziguezagueia e flutua.
Freme como a sede bebe
numa avidez de garganta,
como um cavalo se espanta
ou como um ventre concebe.
Treme e freme, freme e treme,
friorento voo de libélula
sobre o charco imundo e estreme.
Barco de incógnito leme
cada homem, cada célula.
É como um tecido orgânico
que não seca nem coagula,
que a si mesmo se estimula
e vai num medido pânico.
Aperfeiçoo a focagem
Olho imagem por imagem
numa comoção crescente.
Enchem-se-me os olhos de água.
Tanto sonho! Tanta mágoa!
Tanta coisa! Tanta gente!
São automóveis, lambretas,
motos, vespas, bicicletas
carros, carrinhos, carretas,
e gente, sempre mais gente,
gente, gente, gente, gente,
num tumulto permanente
que não cansa nem descança,
um rio que no mar se lança
em caudalosa corrente.
Tanto sonho! Tanta esperança!
Tanta mágoa! Tanta gente!
Hoje apeteceu-me reler António Gedeão. Alguns poemas foram lidos em voz alta!
Confesso que não foi um acto inocente. Aproveitei a presença da minha sobrinha para, como quem não quer a coisa lhe falar dele e lhe aguçar o apetite para a leitura da sua obra. Ela nunca tinha ouvido falar de Gedeão nem de Rómulo de Carvalho. É normal pois só tem 10 anos e provavelmente ele não fará parte do grupo dos autores a estudar durante o 5º e o 6º anos. Mas isso não impede que eu lhe fale dele.
Li-lhe a " Pedra filosofal " ; o " Poema da malta das naus " e " Lágrima de preta ". Muitos dos seus poemas foram musicados e cantados por grandes vozes, que sempre recordarei.
Eu orgulho-me de ter lido Gedeão, Sebastião da Gama, Matilde Rosa Araújo e tantos outros... quando tinha a sua idade. É, em memória dessa minha infância que hoje aqui deixo para quem quiser ler e recordar dois poemas de António Gedeão, professor durante 40 anos, notável pedagogo, poeta e ilustrador que me ensinou a amar as palavras. Esta é também uma homenagem a todos os professores que, ensinando com paixão os seus alunos, não desistem de outros sonhos que provavelmente acalentarão. Bem hajam!!
Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.
Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.
2 comentários:
Olá,
Muito bonitas as palavras de seu blog. Muito obrigada pelo selo e pelo link do blog de Flavia.
Um abraço.
Obrigada Odele. Não tem que agradecer.A Solidariedade e a defesa dos Direitos Humanos são as causas mais nobres que o Homem pode abraçar.
Desejo para a Flávia e para você tudo de bom. Será sempre benvinda nesta sua casa. Força!!!
Um beijo do tamanho do mundo para vocês.
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